Durante toda a leitura de "Restos Humanos", e durante todos os acontecimentos na história, eu sei que estava chovendo. Aquela chuva bem inglesa: fina, em um dia cinza, que encharca os seus sapatos. Se a autora nunca precisou me dizer isso diretamente na história, é só porque "Restos Humanos" tem um clima muito, muito bem construído e que salta das páginas. (Em vários momentos eu me peguei lembrando da vibe do seriado de crime The Fall, da BBC, que se passa em Belfast. Se "Restos Humanos" fosse um filme, por mim eles podiam reciclar todo os cenários e elenco de The Fall).
É um livro obscuro, reflexivo e calmo - não como um dia de férias na praia relaxante, mas como o mar fica minutos antes de uma súbita tempestade.
É um livro obscuro, reflexivo e calmo - não como um dia de férias na praia relaxante, mas como o mar fica minutos antes de uma súbita tempestade.
E a tempestade chega, sim. E com ela temos uma construção não de um whodoneit* (porque trinta páginas do livro e você já começa a ter uma clara ideia de quem é o assassino), mas de um estudo de personagens e suas histórias e motivos.
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Capa nacional do livro. |
"Restos Humanos" é um livro sobre as vítimas e os denominadores em comum (além do assassino) que fatalmente as levaram para um mesmo trágico fim. A história de cada uma delas, contadas brevemente por capítulos soltos durante todo o livro, foram as partes mais emocionantes da escrita. Do tipo que me fazia querer ligar para alguém e dizer "Escuta isso" e começar a ler suas histórias, mesmo do nada e fora de contexto. Porque mesmo assim elas seriam interessantes e de partir o coração.
O livro muda de pontos de vista o tempo todo, cada capítulo tem o nome do personagem cujo ponto de vista é retratado. É admirável como a autora consegue criar tantas histórias de personagens tão reais e emocionantes em capítulos tão curtos. Você não se confunde com a quantidade grande de nomes porque apenas alguns personagens são centrais. As vítimas aparecem apenas uma vez, em seus próprios capítulos. Meu capítulo solto preferido foi a de um pianista chamado Noel, mas todas são muito bem construídas.
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Elizabeth Haynes. |
Eu não posso deixar de mencionar a vida da autora, a britânica Elizabeth Haynes. Ela foi analista criminal e sabe que a profissão, ainda que interessantíssima, envolve uma rotina que está longe de ser um episódio de CSI: Sair de casa cedo, não ter onde estacionar, ligar computadores, fazer café, ouvir conversa de colegas desagradáveis de escritório, analisar dados sobre crimes (em computadores), fazer mais café, fazer chá, sair pro almoço e ouvir esses mesmos colegas te chamando de tia solteirona dos gatos. (Porque, no caso de Annabel Hayer, a personagem do livro, meio que é verdade.).
Aliás. Haynes, Hayer. Eu me pergunto se Elizabeth Haynes também tem um gato?
Annabel é uma personagem com baixa autoestima; do tipo que aceita uma xícara de chá de uma colega que (ela sabe) falou mal dela 10 minutos atrás no refeitório. Mas é inteligente o suficiente para perceber padrões suspeitos em mortes na região, aparentemente dados como causas naturais. Ela é competente e gosta do que faz, e se sua personalidade é um pouco fraca permanece a dúvida: será que ela é assim mesmo, ou esse é apenas um momento em sua vida? (Observação: não leia a orelha da capa do livro, ela conta algo que acontece consideravelmente tarde na história e que muda tudo para a personagem principal, Annabel. Eu li e gostaria que tivesse sido surpresa)
Esse livro também ganha o meu Raspberry Award pessoal para personagem mais cretino, delirante e misógino da literatura. Colin é o oposto de Annabel - ele tem autoestima demais e acredita ser superior e melhor que os outros só porque ele lê bastante livros acadêmicos de estudos e boa literatura. Em vários momentos eu quis dizer pra ele (como eu eventualmente quero pra algumas pessoas na vida) que o fato dele ler Nietzsche, Rilke ou o que quer que seja não faz ele SER o Nietzsche, Rilke ou quem quer que seja.
E não, Colin. Quando uma mulher diz pra você (porque você perguntou) onde fica o banheiro, não quer dizer que ela está sexualmente interessada.
Eu pessoalmente acho que "sacada" que ele tem de tentar analisar comportamento humano por posição dos olhos, mãos e etc é de uma credibilidade extremamente duvidosa hoje em dia, uma vez que desconsidera particularidades de cada pessoa e até mesmo geografia.
Isso sendo dito, o final do livro, em particular o último capitulo, foi muito interessante. Você realmente continua lendo até o último capitulo porque você quer saber o que acontece com essas pessoas, você realmente se importa. Talvez aconteça com você o que aconteceu comigo: no último capitulo, eu consegui entender (ainda que parcialmente) um ponto de vista de um dos personagens que eu nunca tinha conseguido entender até então. Eu repito: esse livro não é um whodoneit. Não há um fim imprevisível.
Você irá encontrar em "Restos Humanos" um livro cheio de personagens interessantes, uma escrita que te leva para lugares não muito seguros no conforto (e segurança) de uma história, e te faz sentir (nunca imaginei que iria usar a combinação de tais palavras) assustado, porém aconchegante. **
E, é claro, um assassino que espera, observa, e está pronto quando você estiver.
*Whodoneit é o um termo que literalmente significa"quem fez", e serve de categoria para livros de crime e detetive onde você não sabe durante a maior parte do livro quem é o assassino.
Isso sendo dito, o final do livro, em particular o último capitulo, foi muito interessante. Você realmente continua lendo até o último capitulo porque você quer saber o que acontece com essas pessoas, você realmente se importa. Talvez aconteça com você o que aconteceu comigo: no último capitulo, eu consegui entender (ainda que parcialmente) um ponto de vista de um dos personagens que eu nunca tinha conseguido entender até então. Eu repito: esse livro não é um whodoneit. Não há um fim imprevisível.
Você irá encontrar em "Restos Humanos" um livro cheio de personagens interessantes, uma escrita que te leva para lugares não muito seguros no conforto (e segurança) de uma história, e te faz sentir (nunca imaginei que iria usar a combinação de tais palavras) assustado, porém aconchegante. **
E, é claro, um assassino que espera, observa, e está pronto quando você estiver.
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** O (hilário) termo Cozy Crime (crime aconchegante) é usado justamente para descrever livros de crime e mistério que você lê (em segurança) em um dia de chuvoso debaixo das cobertas no conforto da sua casa. Usado pra livros da Agatha Christie especialmente, tem uma sessão de cozy crimes inteira do Goodreads e em algumas livrarias estrangeiras você acha o termo impresso até em divisória de gôndola. É a necessidade humana de enfrentar medos e receios em lugares seguros como na literatura e ficção se manifestando.
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