Sangue Quente - Isaac Marion, por Trinta.

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"Então... Você está me falando que existe um livro sobre um zumbi apaixonado por uma garota?"

"É."

"E que este tal zumbi comeu o cérebro do namorado da guria e começou a, tipo, do nada, ser racional?"

"Bem isso..."

"..."

"Que foi?"

"É que tem tantas maneiras de te zoar neste exato momento que eu não consigo me decidir por uma. Quero dizer, você gostou disso?"

"Bem, tem Frank Sinatra, carnificina, uma garota chegada em um baseado e uma reflexão existencialista sobre o fim do mundo. Então... Por que não?"

Vamos cortar o barato e ir direto ao assunto: Este livro é absurdo. Mas não no sentido pejorativo, calma. Ele é apenas algo que você veria jogado no fundo de uma livraria, olharia para a sinopse, levantaria a sobrancelha, leria de novo e pensaria "Isso é sério?". E sim, Warm Bodies não apenas tem 252 páginas de  existência na face da terra como também se leva a sério, o que é o grande fator surpresa da história. Aposto como você estava esperando que eu falasse "Ah, ele é bom porque ele é uma paródia de si mesmo", algo que está ficando comum pra caramba hoje em dia... Mas não. Isaac Marion narra a história de R, um zumbi colecionador de discos de vinil com toda a seriedade que a história poderia ter. Isso é algo bom? Ainda vou chegar lá.

O mundo acabou. Ou pelo menos está caminhando para isto, já que há alguns anos os zumbis começaram a dominar o planeta, colocando em risco a existência da raça humana. Todos os últimos sobreviventes vivem escondidos em estádios de futebol enquanto a grande maioria dos zumbis se reúne nas Colméias, em outra palavra, em aeroportos. R é um desses zumbis, e se você quer saber porque o nome dele é uma letra, bem, é porque ele não se lembra do nome completo mesmo. Quando alguém se transforma em um Morto, a vida passada vira um grande borrão e, a não ser por alguns poucos relances de nostalgia sem qualquer sentido lógico, R praticamente renasceu neste limbo frio e vazio. Sua rotina gira em torno de suas saídas para comer  cérebros com seu amigo M, o casamento com uma outra zumbi (!), o zelo com seus dois filhos adotados (!!) e a constante sensação de que é o único Morto que ainda tem capacidade de pensar. 

Até que um dia R sai para uma caçada com o seu grupo de zumbis e encontra um grupo de adolescentes muitíssimo apetitosos. Não demora muito para R colocar suas mãos em um bom cérebro para comer (depois de muita luta, gritos, sangue e, bá, você sabe, zumbizisses), já que é a sua parte favorita. Só que logo na primeira mordida, uma série de lembranças e flashs começa a aparecer dentro de sua cabeça, como um livro de histórias prestes a ser revelado; um livro em que o principal capítulo é uma bela loira de olhos claros... Julie. O cérebro pertence ao namorado de Julie e, ao que tudo indica, R aprendeu uma das maiores contradições de sua existência: Sentir.



Não me olhe assim. O único problema de Sangue Quente é a época em que ele foi lançado. Hoje, as pessoas estão tão saturadas de "romances sobrenaturais" que acreditam que qualquer obra com um amor interracial entre, err, espécies (?) cai dentro da mesma laranjada. Mas existe sim aqueles que ainda conseguem tirar frutos da galinha de ouro pós-Twilight, principalmente quando a perspectiva adotada pelo autor é a de um excêntrico zumbi, escapando da mesmice narrativa típica da "garota normal". E é essa carta na manga que faz Isaac Marion transformar a história em algo cruamente envolvente; o livro é quase todo descritivo, - já que para um zumbi conseguir falar mais de três palavras sem pausas é preciso ter muita força de vontade - esboçando os destroços de um Estados Unidos pós-apocalíptico com a nostalgia de um ancião e a curiosidade de um recém-nascido. Tem uma parte em especial que eu gostaria de mostrar a vocês, só para tentar tirar a carapuça preconcetuosa de que Warm Bodies é estúpido:


"Levanto-me devagar e vou até o toca-discos. Pego um dos meus LPs preferidos, uma obscura compilação de músicas do Sinatra de vários álbuns. Não sei porquê gosto tanto deste disco. Uma vez, passei três dias inteiros completamente parado, diante dele, vendo apenas o disco girar. Conheço melhor os sulcos daquele vinil do que as linhas das minhas mãos. As pessoas costumavam dizer que a música era a grande comunicadora; fico imaginando se isto ainda é verdade nesta era póstuma pós-humana. Coloco o disco e começo a mexer na agulha quando ele toca, pulando padrões e músicas, dançando através das espirais para encontrar as palavras que que quero que preencham o ar. Palavras que são vistosas, atemporais, pontuadas por grandes arranhões que parecem rasgar a pele, mas o som é impecável. O barítono amanteigado de Frank fala o que quero dizer melhor do que minhas palavras quebradas poderiam, mesmo se eu tivesse a voz de um Kennedy. Fico em pé na frente do disco, escolhendo e colocando as frases que possuem algum significado especial para mim, recortando e colando as coisas que estão em meu coração em um grande álbum imaginário no ar."
Warm Bodies, pág. 69

Tem algo tão doce nisso. É como se eu pudesse sentir as tentativas de R em aprender o que significa ser emotivo, justamente porque o autor escreve como um cara emotivo. Sabe aquele ditadinho popular famoso que fala "Um livro só pode ter uma alma se o seu escritor tiver vivido"? Eu estava lendo a orelha do livro e olha isso: "Isaac Marion trabalhou como instalador de dutos de aquecimento, segurança de estações de energia e em empregos estranhos, como entregador de leitos de mortes para pacientes em hospícios e supervisor de visitas de pais em orfanatos." Se você analizar bem, o fator "Isso é sério?" do livro parece muito com o fator "Isso é sério?" dos trabalhos de Isaac, e talvez seja por isso que, por mais que o livro pareça ser bobo, há uma experiência secreta em suas páginas reservada para quem consegue segurar a língua e apenas... Ler.

O romance entre R e Julie - uma daquelas garotas encrenca cheias de atitude que você acaba aprendendo a amar - não é a única coisa que o livro aborda. Há uma crítica a degradação da humanidade, a qual a pergunta principal "Sobreviver é o suficiente?" estimula uma série de reflexões sobre a forma como enxergamos o mundo a nossa volta. A guerra entre os humanos e os Mortos é muito mais do que um bando de cenas com carnificina, principalmente se levar em conta que dentro dos Mortos há duas facções, os Ossudos e os Carnudos, que tem seus contornos ideológicos levemente baseados (no meu ponto de vista) na divisão entre bolcheviques e mencheviques na Revolução Russa - os radicais enraizados e os levemente tolerantes. R é visto como um rebelde pelos próprios mortos e você sabe tudo sempre sobra para o primeiro a dizer "não". 

Aí você se pergunta... Será que esse livro é realmente tão inteligente quanto este tal de Trinta diz? Eu não sei, para mim fez o requisito, mas eu concordo que todos tem o direito de ter suas reservas. Se você  não curte coisas melosas, Sangue Quente vai parecer banal. Se não tiver cabeça aberta para um pouco de fantasia idealista, então... Passe bem longe.  Eu? Bem, eu fico no time dos que acreditam em dar chances. E quer saber? Olhando agora... Talvez o amor entre um zumbi e uma garota não soe mais tão mongol assim.

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